junho 17, 2010

[a menina escondida nos sonhos]




Por onde as sombras do velho mercado se escondiam, escapava‐se uma brisa esquecida do passado. Por entre cruzamentos anónimos, circulavam olhares sem morada, deambulando por paisagens ocultas.

Escondida entre a confusão, aprendera os primeiros passos no meio de bancadas de fruta, baldes de flores, odores de especiarias e pregões anunciando a qualidade duvidosa de tantos produtos abandonados pela exuberância. As conversas, as opiniões, os conselhos trocados entre terceiros, cujos sentidos roubava ocultando‐se a níveis junto ao solo, haviam sido a sua escola, o abrir de olhos para avenidas onde a sua curiosidade se transformava em visitante assíduo. Cresceu nos corredores da irreverência, no incumprimento das regras, no constante desafio da descoberta.

Ao cair da noite explorava resquícios de vida adormecida e perguntava‐lhes onde e porquê tinham estancado. Perante as respostas sempre mudas, improvisava corridas desenfreadas contra o tempo e sossegava na criação de continuidades cujo futuro fora abortado na reinvenção de cada amanhã. Sem que alguma vez tivesse aprendido o alfabeto, escreveu contos que se narraram de boca em boca. Deu vida a objectos inanimados e luz a resplendores obscurecidos. Inventou passos que nunca foram caminhados. Desenhou identificações sem cadastro. De si nasceram realidades que nunca passaram da ficção.

Hoje, ao cair da noite, quando os corpos se encolhem no aconchego de golas puxadas para cima, sopra uma brisa esquecida do passado. No frio da escuridão irrompe a luz trémula duma chama que conhece os antepassados dessa brisa. Acocorada na antecâmara da noite, a menina a quem o tempo pintou os cabelos de branco e enrugou a pele, encolhe‐se para cá da vidraça e recebe essa planície onde o luar se espraia, ousando ser cicerone das rotinas da natureza.

Enquanto o lusco‐fusco disfarça as cores e os corpos são, momentaneamente, simples silhuetas tridimensionais, a menina contempla os pratos da balança com o sorriso confiante de quem não duvida ser detentora da razão. Os pedaços de vida que a menina recolhia quando o mercado se extinguia no final de cada dia, pesam mais do que os livros que teorizam, argumentam, recusam. A mulher experiente parece falar para os pratos da balança e dizer‐lhes: “Sim! Eu sei… a imaginação supera a realidade. Não é a história uma sucessão de acontecimentos que o homem, primeiro, sonhou?”
(PAS[Ç]SOS)


[palavras provocadas pela imagem, da exposição "Palavras com Objectiva"]

2 comentários:

  1. Bom gosto, sua marca registrada! Um beijo, Deia.

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  2. Fantástica, eu não encontraria palavras. É incrivel como fotografias nos levam a viajar em um mundo. Um mundo sem igual da imaginação.
    Obrigada por essa inspiração gigante que me deixa nos olhos e nas veias.
    Beijos.

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