fevereiro 09, 2016

Ryan



A peculiaridade do problema era óbvia. A originalidade não necessariamente um factor de regozijo.
O dia amanheceu escuro, engolido por um Inverno déspota e teimosamente a querer dar nas vistas. Ryan, que até gostava do toque da chuva, não pensava sequer nisso agora, embrenhado noutro tipo de pensamentos. Lá fora a água escorria em catadupa rua abaixo, capaz de inundar os tornozelos das senhoras calçadas com sapatos de salto alto. Sentado no sofá, envergando um copo com vinho tinto na mão, bebericava um líquido que considerava amartelado, de fraca qualidade e algo que apenas tolerava consumir quando se encontrava sozinho. O que era o caso.
Estava preso a um estilo de vida do qual começava a envergonhar-se. Acusava já a frustração de não conseguir resistir aos impulsos. E pior, começava a sentir-se viciado. Noite após noite, bêbado, deitava-se em lençóis maculados de odor a roçar o insuportável. Fumava na cama até altas horas da madrugada, de olhar fixo nas sombras que dançavam no tecto escurecido.
Uma noite, adormeceu de cigarro na mão e só por sorte que conseguiu acordar a tempo, segundos antes de se deixar imolar por um fogo que já controlava grande parte do lençol. O susto foi de tal ordem que caiu cama abaixo num barulho seco e potente a fazer lembrar o troar de um relâmpago. Nenhuma sequela física.
Dez horas da manhã e a garrafa já seguia a mais de meio. Uma coerência invulgar com a precisão de um relógio suíço. Uma velocidade de evaporação exponencial a cada novo copo. Ryan o bebedolas, pensava para si mesmo. Ryan o esponja. Ryan o Zé Ninguém.
Arrotou com estrondo para soltar uma bolha de gás acumulada nas costelas e que lhe estava a causar um forte desconforto. Talvez a sorte mudasse em segundos. Esperou, mas, desesperou. Bebeu mais um copo. De uma assentada só, sem respirar. Culpou-se por não ter comprado tabaco na noite anterior.
Envolto no cheiro agridoce do último cigarro pronunciou em surdina as palavras que gostaria de voltar a ouvir… amo-te.

© PCV, da série "Contos Ingleses", 2012)


[do texto nasceu a fotografia. obrigada pelo desafio.]




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