"A minha avó morreu. Ontem. Visitei-a dois dias antes. Não a via há meses e pareceu-me na mesma,
como sempre. Conversámos as mesmas conversas do último encontro, fomos
repetindo as mesmas insignificâncias delicadas e inconsequentes. Gostou
especialmente de ver a minha filha; deu-lhe umas pantufas que recebeu
num natal distante e que não lhe serviram, que por timidez ou
generosidade não quis trocar. Daqui cinco anos já lhe servem, disse ela;
e apertou-as muito bem no papel de embrulho, como se fossem preciosas.
Pensei: que significarão cinco anos para quem pode viver apenas mais
cinco horas?
Não parei quieto, impaciente e envergonhado por estar com pressa de
partir; como se o meu tempo fosse precioso. Indiferente à minha
urgência, foi listando tudo o que iria oferecer à bisneta, tudo o que
ainda queria fazer com ela, para ela.
Depois, falámos de médicos. Falámos de casas. Falámos dos vizinhos. Falámos de futuro.
De repente, disse: vou apanhar uma galinha para fazerem canja. E eu,
que não saberia o que fazer com uma galinha, respondi, apressado, talvez
contrariado: não, apanha-a noutro dia qualquer e faz a canja; depois,
jantamos cá. Ela insistiu na oferta, eu insisti na recusa; incapaz de
perceber que forçá-la a adiar era torturá-la. Por fim, desistiu.
Insultou-me por não querer comer nada, por não querer beber nada. Deu
guloseimas à bisneta e ficou triste por eu não permitir que lhe enchesse
os bolsos de rebuçados. Prometi que voltaríamos daí a uns dias.
Voltámos costas. Não viu o último adeus que a minha filha lhe acenou.
A galinha lá andará, ainda.
O caixão é transportado por nós, os netos. Terão passado anos desde a
última vez que estivemos todos juntos, com ela. Caminho e vou pensando,
tentando distrair-me da dor que o peso da morte provoca, mas não me
lembro da última vez em que estivemos todos reunidos. Um jantar
qualquer, em que todos, ou quase todos, estaríamos contrariados, a comer
a galinha com arroz e batatas fritas, à espera da libertação. Como se
fosse penoso estar com quem nos ama. Terá sido essa a última vez. E
agora: todos juntos, agarrando o caixão.
Tenho a certeza que ela gostaria muito de ver todos os netos reunidos
em seu redor, reunidos para si. Claro que agora é tarde demais; e
pergunto, indignado comigo próprio: teria custado assim tanto?
Penso na fotografia que ela guardou durante anos em cima da
televisão: os cinco netos, sorrindo. Sorrisos condescendentes, de quem
não teme o futuro; sorrisos arrogantes, de quem ainda não aprendeu a
saborear o presente, o momento, a insignificância.
Sorrisos de idiotas.
Pediu: dá corda ao relógio que eu já não tenho força. E eu dei,
devagarinho, para não estragar um relógio que é, com toda a certeza,
mais velho do que eu. Ela disse: mais. E eu fui dando.
Quando vim embora, o relógio ficou a trabalhar. Certamente que,
agora, ainda está a trabalhar. Não sei para quê. Não sei se faria alguma
diferença se todos deixássemos de dar corda aos nossos relógios.
Imagino o quarto escuro e silencioso, vazio; o relógio a tiquetaquear, monotonamente.
Imagino o relógio a assinalar as horas que vão passando, com a sua
melodia ingénua e melancólica. E pergunto-me: o que lhe diria se
soubesse que a morte rondava? Não estava especialmente doente, nada
indiciava que a morte pudesse estar tão próxima; mas se tivessem
existido sinais, se me passasse pela cabeça que dois dias mais tarde
estaria morta, que lhe diria? O que se diz a uma pessoa que vai morrer?
O padre diz: a família deve estar agradecida porque esta nossa irmã partiu em paz.
Não compreendo isto. Não consigo estar agradecido. Porque haveria de estar agradecido?
Desligo, não quero ouvir mais. Tento recordar a última vez que me
sentei num destes bancos; não consigo, tenho a memória vazia; reparo que
a pintura das paredes é nova; ou talvez não, talvez esteja enganado. O
cheiro é o mesmo da infância. Penso: passaram tantos anos; mas o tempo
não passou, realmente. Depois, penso isto: a próxima vez que entrar
nesta igreja será porque mais alguém morreu. E não consigo suportar o
pensamento, não consigo forçar-me ao jogo mórbido de adivinhar quem.
Regresso ao padre, em busca de distracção. Vai alinhavando
insignificâncias, improvisando banalidades generosas mas inconsequentes.
Surpreende-me que as pessoas se sintam confortadas por esta série de
lugares-comuns, de generalidades aparentemente bem intencionadas mas, na
verdade, cruelmente restritivas e condicionantes. Penso: belo
palavreado, bela encenação, bela distracção. Olho em redor: o padre
balbucia justificações, os ouvintes escutam; porque é essa a sua função,
o desígnio que o seu deus lhes destinou: escutar e aceitar.
Todos escutam. E aceitam.
Deu-me uma nota de cinquenta euros. Fiz-me difícil mas aceitei. É a
prenda de natal, disse ela. É a prenda de despedida, penso eu. Agora.
Não sei que fazer a esta nota.
Há homens que choram. Homens de aldeia, rijos e firmes, orgulhosos,
homens sofredores, homens pacientes e lutadores, homens cansados e
tristes. Entram resistentes e formais, cerimoniosos; saem a chorar.
Choram silenciosamente, com embaraço mas sem vergonha: é assim que
choram estes homens. E pergunto-me: como seria o meu choro, se
conseguisse chorar?
Algures a meio da adolescência iniciei o percurso que me conduziu a
um ateísmo que, de momento, me parece indefectível. Ela percebeu o meu
afastamento e temeu a minha salvação; sei que fez promessas. E também
mandou rezar missas; por mim, para mim. E eu, do cimo da minha
arrogância, sorri.
Agora, apetece-me pegar nos cinquenta euros e mandar rezar meia dúzia de missas. Cinquenta euros de missas: por ela, para ela.
Porque amar também é isso: fazer o que se sabe que o outro desejaria,
por mais insignificante ou até burlesco que nos pareça. Desistir
daquilo em que acreditamos ou prescindir daquilo que somos, mesmo que
momentaneamente: e oferecer ao outro um sorriso, ou uma possibilidade de
sorriso. Esquecermo-nos: e saborear o sorriso do outro.
Caminhamos pelas ruas tranquilas da minha infância.
O caixão avança devagarinho, atrás a multidão geme silenciosamente.
Um silêncio feito de murmúrios e rumores, de chilreares de pássaros
invisíveis e da cantoria fantasmagórica dos sinos, de arrastares de pés e
estalos de bengalas. Há, também, lágrimas que se ouvem. Há tristezas
que pairam, que convidam à desistência, à rendição; ou talvez sejam
apenas nuvens a passar, apressadas e opressivas.
Algures, um chiar que se intromete na banda sonora da morte: o
guincho dos meus ténis, sempre que o meu pé esquerdo pisa a estrada.
Irrito-me. Penso: uns ténis comprados na feira custariam um décimo do
preço e talvez não chiassem, talvez fossem igualmente confortáveis.
Penso nisto, nos meus ténis de marca, porque é uma maneira de não pensar
em mais nada. Atrás de mim caminham os velhos lavradores que eram
amigos da minha avó; caminham cabisbaixos, olhares firmes na estrada,
perguntando-se quando deixarão de pisar chão firme; talvez algum deles
olhe os meus ténis, talvez algum deles repare nas letras orgulhosas, na
marca, talvez algum deles consiga ler essas letras; e não deixará de se
interrogar. Diesel? Agora também há sapatilhas diesel? E funcionarão com
gasóleo agrícola?
Sorrio. E não tento esconder ou disfarçar o sorriso.
O caixão avança, empoleirado numa carrinha rodeada de flores. E eu
atrás, sorrindo. Agora, que ela já não o pode fazer, sorrio eu; por ela,
para ela.
Nas ruas tranquilas da minha infância, onde ficou o meu passado.
Não sei para que estou a escrever tudo isto. A minha avó não sabia ler."
(Paulo Kellerman)
[um imenso obrigada à Marta Vaz por ter dado uma outra vida e um outro sentido à minha fotografia, ilustrando-a com esta estória (que não é uma estória porque em cada linha há apenas verdade, como refere o autor) absolutamente enternecedora e tocante, do Paulo Kellerman. a ambos, deixo um sorriso.]
(Paulo Kellerman)
[um imenso obrigada à Marta Vaz por ter dado uma outra vida e um outro sentido à minha fotografia, ilustrando-a com esta estória (que não é uma estória porque em cada linha há apenas verdade, como refere o autor) absolutamente enternecedora e tocante, do Paulo Kellerman. a ambos, deixo um sorriso.]